“Eu tenho interesse em mostrar nos meus filmes aquilo que os olhos não conseguem captar”, tenta definir a cineasta japonesa Naomi Kawase. Ela nasceu no dia 30 de maio de 1969, em Nara. Foi criada por sua avó, que a inseria no universo da simplicidade da colheita caseira. Talvez por isso os elementos da natureza são tão importantes em seus filmes. A chuva, o vento, os insetos, tudo participa como protagonista. Ela se formou na Escola de Fotografia de Osaka, lugar que começou a sua produção audiovisual filmando curtas em 8 mm e 16 mm. O fato de ter sido adotada e criada pela tia avó Uno Kawase será marcante, desde o início da sua carreira. A diretora aborda temas como a busca pelo pai (em Céu, Vento, Fogo, Água e Terra), a relação com sua mãe de criação (em O sol poente, Caracol, Viu o sol? e Tarachime), a memória e a transformação na região onde foi criada (em Suzaku e História de gente da montanha), sempre trabalhando nos limites entre autobiografia, documentário e ficção. A avó a respeitou e a apoiou – e atuou de forma condescendente - como ser humano, percebendo a paixão por imagens cotidianas (em movimento) da neta. Naomi a homenageou numa trilogia de curtas. E foi com “Caracol” e “Sol Poente” que intensificou em mim o amor pela seu cinema. Assim como Naomi, também tenho uma história semelhante. Quando eu tinha 16 anos, minha mãe, que sempre apoiou o meu amor cinematográfico, presenteou-me com uma camera VHS e matriculou-me em um curso sobre a utilização técnica do equipamento. As minhas primeiras imagens são familiares. Gravei minha mãe sendo balançada pela rede, as conversas com minha avó e avô, os momentos com meu pai, os instantes engraçados com meus primos (e afilhados). Daí, iniciei gravações em festas de família, que tenderam aos trabalhos profissionais de quinze anos, casamento e infantis. Eu registrava instantes em movimentos. Sempre escolhi o momento menos óbvio. Buscava a naturalidade, a realidade, o documentário da idiossincrasia.
O ser humano significava – e ainda considero isso – como o principal material bruto. É a própria base. O próprio começo de um caminho, demonstrando a falta de reproduções sociais e conservando o estado intrínseco de não se definir algo. Ao observar o cinema de Naomi Kawase, vejo nele elementos pessoais. São lembranças. Nostalgias guardadas que servem para relembrar o que se é. O dia-a-dia revela a extrema simplicidade de não se buscar nada. “Ela sempre filma. É tudo que ela faz”, diz a avó, resignada, feliz e preocupada com o futuro de sua cria. Há colheita, ervilhas, minhocas, arar a terra. Ela experimenta o cotidiano. Filma tudo, eternizando a percepção momentânea. É inegável a transformação do individuo quando vivencia plenamente a sociedade, que não tem pudor em massificar regras generalizadas. Naomi deve ter mudado. Mas as imagens daquele momento não. As ideias são conservadas para sempre, então podemos inferir que são datadas. Outro elemento utilizado por ela é a carta, que resgata palavras do passado. O que a avó diz sobre ela será eterno. Naomi tem a humildade de deixar transparecer erros, acertos, experimentos e o aprendizado que está tendo no momento. Não quer ser nada, só tentar. Só filmar. Só retratar, com uma ou outra técnica cinematográfica. Não há vergonha. Ela não é covarde. “Eu estou sempre disponível. Para que filmar o tempo todo?”, diz a avó num misto de existencialismo e pureza bruta. Naomi passa o tempo de tolerância ao que se filma. Ela prolonga a ação, deixando quem é filmado sem saber o que fazer e quem assiste sem ter a noção do que esperar. Esse espaço, entre o começo da cena até o excesso do que está filmando, é a verdadeira essência do cinema.
“Eu filmo você agora”, diz a avó. A grande diferença entre a minha história e a da diretora japonesa é a quantidade de amor despejado. Eu adiei o meu futuro por um tempo. Ela seguiu adiante de pedacinho por pedacinho, como uma formiguinha, como uma andorinha, que no caso dela, fez um calorento verão. Os seus silêncios dizem mais que palavras. Os detalhes contam a historia do todo. O nada registra o tudo. Naomi recebeu, no outono de 2001, um telefonema de Nishii Kazuo, um crítico de fotografia: “Eu tenho menos de dois meses de vida. Você me filmaria até meu último suspiro? Conto com você, Kawase”. O documentário “Carta de uma cerejeira amarela em flor” de 65 minutos transmite a crua, mórbida, escatológica experiência da morte. É perturbador, necessário, destrutivo, salvador, libertador. Com inúmeros momentos existencialistas, o filme é primoroso por ir de encontro ao que realmente somos. O catarro, a tosse, o cheiro desagradável do corpo, a figura retratada de um iminente falecido, tudo participa do processo. É a trajetória mais do que real, transcende barreiras de quanto um ser humano pode suportar. É fantástico. Assim como os seus longas “Shara”, “Nanayo”, “A Floresta dos lamentos” e o novo filme “Hanezu”, que foi apresentado semana passado no Festival de Cannes.
Concluindo, quando eu crescer, quero também construir o cinema que Naomi Kawase realiza. A diretora afirma, em entrevista a Felipe Bragança publicada na revista eletrônica Cinética: "É por dentro da própria experiência do filme que a tristeza se transforma em alegria. No meu filme, os atores interpretam os papéis como estivessem vivendo o seu dia-a-dia, na vida real. As câmeras filmam este acontecimento com calma. É claro que existe um conceito minucioso na minha visão, mas que ficará mais claro na hora de edição somente. Na hora de filmar a cena, eu me concentro em registrar a realidade como se fosse um milagre."
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Principais Prêmios
2009 - Carrose d'Or - Quinzena de Realizadores do 62o Festival de Cannes, em reconhecimento ao conjunto de sua obra
2007 - A floresta dos lamentos - Grande Prêmio no 60o Festival de Cannes
2000 - Hotaru - Prêmio FIPRESCI no Festival Internacional de Locarno
1997 - Suzaku - Camera d'Or no Festival de Cannes
A cineasta vem ao Brasil e falará com o público no dia 27, sexta-feira, após a exibição de “Hanezu ne Tsuki”, filme que concorreu na mostra principal do Festival de Cannes deste ano. O longa-metragem será exibido na sessão de 18h30, no Cinema 1, com capacidade para 102 lugares.