Por Fabricio Duque
Um dos papéis da arte cinematográfica, que tem como elemento intrínseco imagens visuais em movimento, logicamente, é transpor as barreiras das experimentações artísticas, imprimindo nas narrativas uma “fuga" do comum, uma ilusão de se poder olhar a realidade com o “alibi" da câmera ficcional. É também lógico que os indivíduos inseridos nesta criação trazem suas próprias individualidades e particularidades. Alguns projetam a fantasia para contar histórias. Outros querem a tradução nua e crua, que é o caso do cinema romeno ao almejar incômodos ao espectador por abordar temas polêmicos, conduzidos livremente e mitigados de suavização dramática. O que se assiste é um retrato-radiografia seco, direto e sem pudor sobre os tabus que são pululados nas mentes sociais de seres humanos que necessitam mascarar fetiches politicamente incorretos. O preâmbulo é definidor para que se possa ambientar o leitor-cinéfilo ao longa-metragem "Urutau" do estreante diretor carioca Bernardo Nabuco (leia AQUI a entrevista). Aqui, o cinema de gênero do leste europeu é “vestido”, tentando assim uma reprodução fidedigna das características e conduções próprias. A narrativa apresenta-se calma, sem afobação, em planos longos, estáticos e simétricos ao natural, com poucos cortes, a fim de “aprisionar" o espectador à trama sobre a pedofilia, “permitindo" que nós sejamos visitantes “voyeur”, e “estimulando" o "prazer" da observação (a necropsia) aos atos sexuais e as práticas íntimas de dois únicos personagens (os atores Nicolas Sambraz e Gerson Delliano) que se retro-alimentam na regurgitação de seus impulsos instintivos em um cárcere privado (local este que fornece o mínimo ao “cio" destes “animais" - que se mascaram com o 'não' que quer dizer o 'sim' da aceitação). É um filme que por por essência exige demasiadamente de seus personagens principais, visto que em setenta minutos de duração também somos “prisioneiros" desta relação simbiótica de co-dependência. “Urutau" cria paralelos entre “agressor" e “agredido”; “estuprador" e “estuprado”; “sequestrador" e “sequestrado”. De um lado, o “monstro dominador” (sistemático, egocêntrico e individualista no prazer objetivado). Do outro, um “objeto frágil” (submisso, de resignação apática - que se excetua quase como um índio que se rebela por querer mais “um pedaço de bolo", paciente, medroso, de afetividade comprada - interesseira - e ciente do papel e lugar que se encontra - mesclando fascinação e cautela nas ordens que "merece"). Aos poucos, por detalhes precisos do próprio amadorismo contido na estrutura cotidiana (as micro-ações), percebemos que o “boneco inflável” afeiçoa-se, com a já esperada Síndrome de Estocolmo, e “corta" suas próprias asas, futuros e perspectivas. “É um pássaro que foi mantido preso tempo demais e que quando tem a oportunidade de sair, não vai”, disse o diretor na sessão exibida pela primeira vez na VII Semana dos Realizadores 2015. A parte técnica é um brilho extra aos olhos. A maestria da fotografia amadeirada satura o cru como o simbolismo do básico, do “tesão" claustrofóbico (como curiosidade, o cenário é o cofre da Escola de Cinema Darcy Ribeiro) de se buscar o sexo-submundo-marginal. A história não se preocupa com o antes (e suas causas) e sim, única e exclusivamente com o momento atual, e como uma parábola, fornece a moral de um “urutau" - um solitário - e sua consequência. Há algo de mitológico. O professor que ensina o aluno “aplicado”, e que o “xeque" do jogo de xadrez é alfinetado para que o “xeque-mate” retorne o equilíbrio. Sim, a repulsa é sentida (principalmente na cena de sexo com o ranger da cama), incomodando a “viagem" às “realizações" mais “taradas" e “perversas" da alma humana. “Urutau" é um exercício de encenação, que se comporta na linha tênue da teatralidade e da realidade. Há uma máxima de que a finalização de um filme é sempre uma “pedra no sapato” de dez entre dez cineastas. Aqui, não poderia ser diferente. A reviravolta abrupta do final fragiliza e perde seu ritmo. Contudo, se pensarmos que as limitações orçamentárias eram “gritantes”, então temos quase o dever de aceitar a cumplicidade que nos é exposta. Concluindo, o longa-metragem é o “passaporte com visto” ao meio cinematográfico independente. E definitivamente sua versão dogma romena abrasileirada. Recomendado.